Allez LouLou, Mon Amour.

A crónica de um grande campeão cujas pernas já não acompanham a mentalidade, escrita por um fã que só o quer voltar a ver levantar os braços. De preferência, mas não obrigatoriamente, cruzando a meta em primeiro. Porque nem sempre ganhar é tudo.

Allez LouLou, Mon Amour.

A primeira coisa que eu quero transmitir é que, apesar da prioridade habitual do falso plano ser o humor (algo que eu muito prezo), este não é um texto jocoso em relação à pessoa de Julian Alaphilippe. Eu brinco quando falo em Bettiol ser uma lenda e em Cortina ir ganhar a Paris-Roubaix (ainda é possível). Brinco quando digo que ao Almeida só lhe falta a coragem de atacar Pogačar para ganhar um Tour e quando prevejo que, finalmente, Caleb Ewan irá vencer a Milão Sanremo (já não é possível). Alaphilippe é diferente, eu levo a coisa um bocadinho mais a sério. E porquê?

Eu acho que está a acontecer com Alaphilippe algo que é relativamente habitual com a mediatização imediata de tudo: tornar o homem num meme — ele ajuda, eu admito — e ter tendência a esquecer que ele foi um dos ciclistas mais entusiasmantes de se ver correr nos últimos anos. Ou que teve um papel fulcral na evolução recente do estilo de corrida, muito mais ofensivo e apelativo para nós, ciclistas de sofá. Ele ainda tem essa ousadia embora, infelizmente, já nem sempre tenha as pernas. Eu não tenho problemas nenhuns com o meme. Tenho alguns problemas com o esquecimento. Reescrevendo, eu nem tenho problemas nenhuns com o esquecimento, mas ainda assim, quero ajudar a combatê-lo. Porque para mim ele também é um meme, mas não é só isso.

Alaphilippe era o ciclista na berra quando eu deixei de ver só Grandes Voltas. Foi provavelmente um dos principais causadores de eu ter deixado de ver só Grandes Voltas. Estamos ali por 2018, peak Sky Train era. Peak Alaphilippe, também. Às vezes, as balanças do entretenimento equilibram-se por caminhos esquisitos. O Mur de Huy já não mais era dominado por Alejandro Valverde que, vindo de 4 vitórias consecutivas na Flèche Wallone, se viu obrigado a sentar na bicicleta pois o ousado francês dono de uma moustache incrível tinha atacado de "longe" para a vitória, sem mais dar hipóteses a ninguém.

Era, até à data, a maior vitória da sua carreira. A que marcava a entrada nos seus 3 anos de maior glória. (Nota: para os miúdos aí de casa, sei que isto pode parecer estranho, mas antes os ciclistas começavam a ser bons aos 25, não aos 18).

Nesse Tour consolidou-se como a nova coqueluche francesa. Duas vitórias em etapa, a camisola das bolinhas e estilo para dar e vender pareciam agradar a exigente media gaulesa que, rendida à incapacidade de vencer o Tour, se via satisfeita por ter, finalmente, um dos melhores classicómanos do mundo nas suas fileiras. Chegávamos a 2019 e a entrada não podia ser melhor. Strade Bianchi no bolso e vinha aí a consagração com a conquista do primeiro monumento —  e único, por incrível que (me) pareça — da carreira. Como disse que a ideia não é convencer-vos que ele já foi bom, mas sim relembrar-vos e mostrar-vos, fica o vídeo.

Durante alguns anos, o ataque de Alaphilippe nas rampas finais do Poggio faziam companhia à morte e aos impostos como maiores inevitabilidades da vida.

Sem querer tornar isto uma cronologia da sua carreira (mas tendo dificuldades em não o fazer), seguia-se a melhor underdog run de que tenho memória no Tour de France, que por muito que se queira e muitas voltas se dê, é o palco maior do ciclismo. Sim, eu sei que Voeckler também foi bom, mas não vivi com tanta intensidade, sou um jovem, nem nunca acreditei que ele poderia realmente ganhar.

Na terceira etapa da edição desse ano, Alaphilippe faz valer o seu favoritismo. Defende o estatuto de melhor puncheur do mundo e chega à camisola amarela. Em teoria, de forma provisória, mas a história não seria bem assim. Na primeira chegada em alto, na La Plache des Belles Filles, defende-se junto do grupo dos favoritos, embora perca a camisola amarela para um Giulio Ciccone que tinha feito parte da fuga do dia. Na primeira oportunidade, dois dias depois, volta a atacar para a recuperar. Chega à 13.º etapa, o primeiro contrarrelógio individual e um dos meus dias favoritos na história do ciclismo. E Ala espanta o mundo. Num esforço individual de 27 quilómetros praticamente planos, dizima os especialistas e vence com 14 segundos de avanço sobre o campeão em título, Geraint Thomas. LouLou não ia entregar a amarela de mão beijada, ia agarrar-se a ela com unhas e dentes, assim como a esperança dos franceses nele. No dia a seguir, o sonho acabar-se-ia. Afinal teríamos chegada ao mítico Tourmalet, certo? Mais uma vez, um erro de cálculo por parte de basicamente toda a gente. Alaphilippe faz 2.º na etapa, apenas atrás de Thibaut Pinot. É difícil a esta distância ter noção do quão surreal este desempenho era, dadas as expetativas. Aquelas coisas que acontecem muito raramente no desporto, completamente inexplicáveis, e que nos fazem apaixonar por ele.

Eu não sou de clubites e isso é talvez uma das maiores razões para gostar tanto de ciclismo. É verdade que há quem goste mais deste ou mais do outro, mas a larga maioria dos fãs de ciclismo vêem pelo amor ao jogo, apesar de eventuais e naturais preferências. Hoje, com a feliz ascensão dos ciclistas portugueses e com destaque para o grande João Almeida, isso mudou um pouco. Nós temos realmente alguém por quem torcer. E isso, apesar de me dar um enorme prazer e de, no limite, eu e esta página contribuirmos para essa "tribalização", às vezes faz-me sentir que essa pureza se esbate um bocado.

Isto para dizer que, em 2019, um jovem Henrique Augusto torcia finalmente e com todas as suas forças por alguém. Torcia para que o impossível acontecesse. Para que ele aguentasse mais um dia, só lhe pedia mais um dia, todos os dias até ao fim. Torcia e acreditava que aquela frieza robótica da Sky só podia ser desmantelada e vencida pela irreverência, pela ousadia e pelas caretas de quem sabia que não devia estar ali mas que, agora que estava, daria a vida para não deixar de estar. Toda a gente sabe como acabou. Julian Alaphilippe não ganhou, mas isso de nada interessa. A maior parte das histórias de amor não acabam bem e não é por isso que deixam de ser belas.

Há coisas que não se explicam, e normalmente são as melhores.

Em 2020, plena pandemia, Alaphilippe voltava ao Tour, voltava à amarela (foram 4 anos seguidos a vencer na Grand Boucle e 3 seguidos a envergar a amarela) mas o homem da GC já não existia. Na verdade, nunca tinha existido. Aquela run foi uma coisa que aconteceu daquela vez, naquelas circunstâncias e não era, felizmente, repetível. Nesse ano, em Imola, sagrar-se-ia pela primeira vez campeão do mundo, mostrando que, naquela época, não havia pai para ele nos muros curtos e explosivos. Belos tempos.

Mas o mais interessante de 2020 vem a seguir. Apresenta-se à partida da Ronde van Vlaanderen (Volta à Flandres) pela primeira vez na sua carreira, do alto dos seus humildes 62 quilos, e mais uma vez contradiz a lógica. Se a lógica dizia que com esse peso não podias lutar no pavé, Monsieur Julian provava o contrário. Já numa fase adiantada da corrida, dá por ele a dividir a frente da corrida com nada mais nada menos que Wout van Aert e Mathieu van der Poel — dupla que viria a discutir, ao sprint, a vitória entre si —  quando é abalroado por uma moto.

Apesar da desilusão ter abatido o herói desta crónica de forma brutal quando a glória estava tão perto — algo que é capaz de bater certo com vários momentos da sua carreira, diga-se — os dados estavam lançados. Os preconceitos existentes no ciclismo existiam exatamente para serem desmentidos. E eu encaro este senhor como um dos responsáveis por ter entreaberto essa porta que entretanto foi escancarada violentamente, ao pontapé e de forma única, por um esloveno que anda aí com jeito para dar ao pedal muito rápido.

Foi o principio do fim do reinado de Julian Alaphilippe. Ou, se calhar, foi só o inicio de algo diferente.

ELE IA GANHAR. JURO JOCA.

É verdade que em 2021 ainda vence a Flèche, uma etapa incrível no Tirreno Adriatico, uma etapa no Tour e os Mundiais. (Bem, agora que escrevi isto, se calhar a queda que referi anteriormente não foi bem o início do fim. Mas pronto, é assim que eu tenho as coisas na minha cabeça, este artigo é meu, por isso vamos assumir isso como verdade.)

No fim deste ano, abrem-se os bate bocas com Patrick Lefévere (também ele protagonista de uma crónica falso plano). Seguem-se, já em 2022, as quedas na Strade Bianche e na Liège-Bastogne-Liège, a ausência do seu querido Tour, onde tinha picado o pontos nas 4(!) edições anteriores, e a ida à Vuelta como gregário que terminou também com ele no chão. Agora, sim, oficialmente, o fim do reinado. Os rumores da saída da Quick-Step, as acusações de que gostava de beber um copo, a falta de sucesso desportivo, a ascensão de outras estrelas a ocuparem o seu lugar. Não víamos mais o dominador Alaphilippe, provavelmente nunca mais veremos, resta esperar por um pequeno vislumbre que relembre o brilhantismo de outros tempos.

Antes de vos falar de alguns vislumbres desses a que, de vez a vez, ainda temos assistido, queria só deixar uma nota: apesar de ser obviamente atacável um ciclista, ou qualquer atleta de alta competição, beber uns copos a mais quando não deve, não deixa de ser engraçado. Não deixa de transmitir um certo instinto de "fora-da-lei", de quem não se rege pelas mesmas regras, de quem dá tudo na estrada mas também dá tudo fora dela tendo a plena noção de que o "mundo é bué cenas" e de que o Jeremias deve ter tido uma vida muito mais divertida do que a maioria de nós. Alaphilippe — como o personagem nascido da cabeça do genial Jorge Palma — também "escolheu o seu lugar do lado de fora".

No captions needed.

Os sucessos desportivos, a partir daqui, contam-se pelos dedos de uma mão. Destaca-se a vitória no Giro d'Itália de 2024, talvez a maior vitória do novo Alaphilippe e que teve tanto de extraordinária como de estúpida, mais uma vez contrariando todas as regras do ciclismo. O homem atacou uma fuga gigante a mais de 100 quilómetros da meta, como muitas vezes faz de forma inexplicável, foi violentamente ofendido por mim por fazê-lo, colocou adversários a trabalhar para ele e gerou discussões no seio do falso plano. Eu fui acusado, pela primeira e penso que única vez (porque ele não tem ganho assim tanto), pelos meus pares de clubite no twitter que partilhamos, de forma eventualmente justa e também obviamente jocosa e provocatória.

"Isto não é um clube de fãs do Alaphilippe", diziam. Não é? Na minha cabeça, o mundo é um clube de fãs do Alaphilippe. E, diga-se, nesse dia, Mirco Maestri provou que a minha visão pode ser enviesada, mas que não sou o único a pensar assim. A ideia de seres tão respeitado pelo pelotão que um colega de profissão que é um adversário deixa a pele na estrada para te ajudar a voltar a vencer é, para muitos, ridícula. Para mim, é das coisas mais bonitas que podem existir no desporto, quando a idolatria supera o profissionalismo e o teu sonho de criança supera o racional. Mirco Maestri teve, no dia da vitória de Alaphilippe, o melhor e maior dia da sua carreira. É estranho? Sem dúvida. É também desporto no seu estado mais puro.

Por um dia, foi como de colegas de equipa se tratassem.

No fim da época, Ala transfere-se para a Tudor, procurando liberdade e uma garantia de presença no Tour. Os grandes sucessos parecem já estar para trás das costas. Mas o estilo, a estupidez, a desfaçatez e ambição permanecem. Estamos em pleno 2025, mas Julian Alaphilippe ataca Tadej Pogačar na Amstel, depois trabalhando com ele. Porque pode, porque vive no seu próprio mundo, porque o cérebro de vencedor ainda está lá, as pernas é que não acompanham. Se calhar porque não consegue olhar para outro e vê-lo como um superior, não consegue jogar à defesa nem consegue aceitar que os melhores tempos já passaram. Isso pode ser uma realização triste, aliás, tem de ser uma realização triste, para ele e para mim. Mas a verdade é que são este tipo de ciclistas que nos fazem sentir coisas, e se não é para isso que perdemos horas a ver corridas, é para quê?

Na segunda etapa do Tour deste ano, na chegada a Boulogne-sur-Mer, Alaphilippe aparece na frente a 600 metros do fim e ataca. Eu sou uma pessoa racional a maior parte do tempo, às vezes demais, e com qualquer outro ciclista eu teria a imediata certeza que atacar Pogi e MvdP naquele momento era hipotecar as chances de um bom resultado. Mas com Alaphilippe as coisas não funcionam da mesma maneira.

Coloquei-me em cima do sofá e gritei o nome dele, toldado pelo sentimentalismo e por uma emoção que transcendeu o racional. E esses são os momentos em que percebes que as histórias, os personagens e suas personalidades são o que fazem realmente valer isto tudo a pena. Ser criança, ser "clubístico", ser emocional e irracional, mesmo que apenas por uns momentos. Não ganhou mas, mais uma vez, nem sempre é isso que interessa.

Por tudo isto, é normal que todos gozemos com ele. Eu não sou ninguém para vos dizer para não o fazer, eu também o faço. Com ele e com tantos outros ciclistas. Aliás, faço-o diariamente, quer em grupos de WhatsApp quer agora nesta plataforma que criámos para partilhar convosco as nossas opiniões, sátiras e trocadilhos.

Só não queria que se esquecessem que Julian Alaphilippe é também mais do que um meme. É um grande ciclista e um grande personagem do qual tivemos o privilégio de assistir a grandes momentos e do qual assistimos agora a uma tentativa ambiciosa do herói se reerguer. Já não vai a tempo, já não vai conquistar o mundo. Mas ainda pode provar, mais uma vez, que a lógica nem sempre está certa, que o potenciómetro nem sempre tem de ganhar as corridas. Já não tanto como noutros tempos mas, de vez a vez, raramente mas de forma incrivelmente saborosa, o panache ainda pode vencer.

Não sei quantas alegrias ainda me vai dar. Mas acredito profundamente que, ao mais alto nível, pelo menos mais uma vez vai enganar toda a gente.


Eu não sou radical em muitas coisas. Mas custa-me muito perceber quem ame ciclismo (como eu amo) e não torça para ver Alaphilippe levantar os braços. De preferência, mas não obrigatoriamente, chegando à meta na primeira posição.

Allez LouLou! ❤